CEREDA JUNIOR, A. Geografia da Saúde: um “mapa das doenças” – do Dr. John Snow à Dengue e ao Zika Vírus. Conhecimento Prático: Geografia, São Paulo: Editora Escala, edição 66.
ou “como a Geografia pode ajudar no combate às doenças?“ Sobre o autor.
No início da minha graduação em Geografia na UNESP [a] Rio Claro, em um dos primeiros trabalhos de campo, o ponto de parada de Santa Gertrudes (SP) trouxe um incrível “novo par de olhos”: a Profa. Dra. Sandra Pitton apresentou a problemática presente neste município da alta incidência de doenças respiratórias [1] e, como tal fenômeno, se relaciona com as atividades econômicas do mesmo, visto sua inserção no Polo Cerâmico: eis a Geografia da Saúde, que incrível desvelar!
Integrando dados de visitas in loco e de bases governamentais, variáveis físicas, sociais, ambientais e políticas, utilizando metodologias de análise e tendo os mapas não como apoio pictórico, mas como meio para o entendimento integrado, pode-se não só descrever ou entender um fenômeno, mas possibilitar que pessoas, empresas e os gestores públicos tomem decisões que alterem a vida – e sua qualidade – como a poluição por particulados da indústria ceramista.
Este olhar geográfico, o qual a professora sempre dizia que iríamos desenvolver ao longo do curso, é aquele que o Professor Roger Tomlison citava “quando você descobre a Geografia, ganha um novo par de olhos”. O professor britânico, também Geógrafo e pai dos Sistemas de Informações Geográficas (SIGs, sistemas computacionais que permitem desde a coleta até o processamento e análise de dados geográficos, além do compartilhamento e uso em inúmeros dispositivos), estava falando não de algo intangível, mas que pode se explicar, por exemplo, com o subtítulo de um dos livros que conta uma história real que “mudou o destino de nossas metrópoles”.
TRADIÇÃO OU PRECONCEITO?
Caricatura do Dr. John Snow
O livro ao qual me refiro é “O Mapa Fantasma” [2] que narra o surto de cólera em Londres em 1854; um surto que levou à morte mais de 600 pessoas em poucas semanas, mas que com visão à frente de seu tempo, um médico, Dr. John Snow, além de interrompê-la, trouxe luz a problemas – e ações de intervenção no território – que levaram às novas formas de se pensar a organização dos espaços e serviços públicos, como a distribuição de água e coleta de esgoto.
“Somente com a observação do problema não é suficiente para mudar o destino de nossas cidades.”
Broadwick Street hoje. Foto de Glauber Giustina
Naquele momento, em que a teoria miasmática era a vigente nos meios médicos, Snow ainda sem o suporte da teoria microbiana, desenvolvida alguns anos mais tarde, não conseguia sustentar evidências que as mortes em Londres, por seguidos surtos de cólera, eram causadas por poluentes no ar. Munindo-se de observações de campo (com o apoio do antes defensor da ‘contaminação por odores fétidos’, o Rev. Henry Whitehead), técnicas estatísticas e análises espaciais (com diagramas de Voronoi), pôde correlacionar o maior número de mortes em uma região específica do distrito de Soho pelo uso de água contaminada, servida pela bomba d’água da Broad Street (antiga Broadwick).
Mesmo com manifestações populares contra a interrupção no fornecimento de água e indo de encontro ao status quo científico e religioso, as observações, análises, relatórios e ação destes pioneiros foram corroborados com a diminuição, em poucas semanas, das mortes e fim do surto, comprovando a relação entre esta, a localização do fornecimento de água e os consumidores. Observação, campo, dados, análise, integração e painéis de decisão: assim foi o case de 162 anos atrás. Por que nossos gestores – e até especialistas – ainda estão distantes destas aplicações?
A maioria deles ainda possui a função de representação gráfica do fato; e quando há preocupação com a Cartografia Temática, deve ser parabenizada, visto que grande parte segue wizards para geração de mapas; alguns gestores e formadores de opinião o utilizam como referência!
Já presente em diversos portais, versões digitais de jornais, redes sociais e até apps colaborativos, os “Mapas da Dengue”, “Infográfico do Zika Vírus”, etc., não seriam exemplos reais do que está sendo discutido? Não.
Nesta visão estamos tratando da denúncia e apresentação gráfica de problemas e/ou fenômenos. Somente a observação do problema não é suficiente para mudarmos o destino de nossas cidades. A Inteligência Geográfica, ou seja, a integração entre a Geografia e Tecnologias, nos leva para outras dimensões, incluindo o espacializar, mas também trazendo a integração de dados e modelagem.
“Explicações e distribuição de fenômenos levam à discussão crítica para mui to além da leitura vertical que se possa fazer sobre causa-efeito da localização dos criadouros de Aedes aegypti…”
Com a coleta de dados sendo o alicerce da Inteligência Geográfica, de fontes e naturezas diversas, a organização destes de maneira estruturada e que permita a consulta – seja tabular ou espacial – e a utilização de uma linguagem visual para transformar os signos em significados, possibilitam a criação de um mapa.
INTERVENÇÃO
Prof. Dr. Roger Tomlinson, o pai do GIS (SIG)
Entretanto, o que aqui se discute não é o produto mapa ou mapa das doenças ou mesmo a adoção de sistemas computacionais que se tornam silos de dados, mas da intervenção, por meio da integração da Geografia e Tecnologias, unindo a visão de “Snows, Tomlisons e Pittons” e de inúmeros pesquisadores, planejadores, institutos de pesquisa, órgãos de saúde, empresas e cidadãos que buscam o entendimento de um fenômeno (seja social, econômico, ambiental, político…) utilizando uma Plataforma (e esta tecnológica) que possa integrar múltiplas inteligências.
A procura e quantificação dos dados, respondendo ao ‘onde?’, utilizando na busca outros elementos geográficos, topologias e realizando medições, sejam da Estatística Clássica, até cálculos mais complexos envolvendo Estatística Espacial e Geoestatística é essencial neste processo, sendo que Clarke [3] define a Geografia como o “estudo de padrões espaciais, que procura identificar e explicar a localização e distribuição dos fenômenos físicos e humanos sobre a superfície da Terra”.
Tais padrões, explicações e distribuição de fenômenos levam à discussão crítica para muito além da leitura vertical que se possa fazer sobre causa-efeito da localização dos criadouros de Aedes aegypti, sendo um elemento fundamental no entendimento e respostas científicas se há relação entre Zika e microcefalia; quais variáveis multidimensionais podem melhor expressar a relação entre doença e o Espaço Geográfico, de maneira horizontal?
Como levantado pelo Prof. Dr. Erico Andrade [4] a “geografia do Zika não é um acidente ou anomalia, mas uma decorrência quase necessária da falta de esgoto, água e coleta de lixo sobre o qual acumula-se esta”. O uso da Inteligência Geográfica para além da gestão da crise, sendo este um módulo de uma plataforma de gestão de políticas públicas, repousa na necessidade da integração de pessoas e sistemas, mapas, apps, ferramentas de suporte à tomada de decisão, em ambiente colaborativo e acessíveis aos níveis técnicos, gerenciais, de planejamento, executivo e político, sendo uma resposta ao setor público para problemas ainda presentes no Brasil como na Londres vitoriana: o saneamento básico, além de possibilitar ajustes fiscais e financeiros, com uso racional dos recursos.
Já discutido em artigos anteriores [5], o conhecimento do Espaço Geográfico – e a identificação de padrões espaciais – acompanha a ciência Geográfica em suas concepções mais elementares, mesmo que com outras construções teóricas ou sustentáculos ideológicos. Contudo, por padrões espaciais, ou spatial patterns, entende-se não somente a análise espacial dos dados, em seu sentido geométrico, mas na análise do Espaço Geográfico e suas organizações espaciais. O trabalho de Galli & Chiaravalloti Neto [6] é um exemplo do nível “modelagem”, utilizando análises têmporo-espaciais para avaliar áreas de risco para a ocorrência de dengue, não só de maneira teórico-metodológica, mas aplicando-o para São José do Rio Preto – SP.
GEOGRAFIA DAS COISAS
Para que alcancemos estes níveis, com a efetiva identificação de padrões, compreensão de fenômenos e projeção de cenários, algumas críticas são levantadas pela complexidade anunciada (e disseminada), seja na necessidade de pessoal especializado e formação, mas, principalmente, nos custos de implementação tecnológica de ferramentas, como de um Sistema de Informações Geográficas. Esta visão continua presente, pois pensamos em software, mas já vivemos a Era das Plataformas [7].
Com o advento da Geografia das Coisas [8], ou seja, Dispositivos, Vivência, Sociedade e Sistemas de Informação integrados e interligados por meio de redes de informações, como anunciado por Castells [9], em que a relação não é somente homem-máquina, mas uma relação cidadão-sociedade-tecnologia, é possível utilizarmos smartphones, redes sociais e colaborativas, softwares e aplicativos de baixo custo ou mesmo padrões abertos para dar início e desenvolvimento a uma Plataforma de Gestão do Conhecimento do Território.
Diversas iniciativas bem-sucedidas podem ser citadas para exemplificar o apresentado, seja por empresas ou governos. Mas dois projetos que surgiram no seio Educacional, tratando de casos de Dengue, no Ensino Fundamental e no Ensino Superior, podem ser destacados:
Mapeamento colaborativo Moradia Estudantil UNICAMP [b]. Esse projeto foi realizado voluntariamente por um Grupo de Trabalho independente, formado pela comunidade moradora, para mapear os casos de dengue na Moradia da Universidade durante a epidemia de 2014, subsidiando a busca por criadouros do vetor Aedes Aegypti. A fonte de dados foi colaborativa, contando com a participação dos moradores no fornecimento de informações por meio de um formulário na nuvem. Com os resultados, foi possível concentrar as ações de combate (mutirões e vistorias) nas áreas com maior probabilidade de existência de um criadouro, com uso de Análise Espacial, de forma que o esforço fosse mais efetivo e o combate ao mosquito fosse mais rápido do que se não houvesse critério espacial de priorização [10]
Projeto GeoApp UNIFAL [c]. Visa produção de aplicativos na nuvem para Ensino, a partir de iniciativas do Curso de Geografia e áreas afins da Universidade. Realizando pesquisas de temas geográficos juntos com a comunidade escolar, são posteriormente utilizados como apoio didático na Educação Básica, com disponibilização gratuita via internet. Um destes aplicativos, criado por alunos da Escola Municipal de Ensino Fundamental Joaquim Antônio Vieira – Polivalente, apresenta mapas comparativos da distribuição dos casos de Dengue entre 2013 e 2014, em Alfenas-MG, confirmando a relação da epidemia da doença com os focos em locais em que o lixo não está sendo remanejado adequadamente e em depósitos domiciliares. [11]
DATASUS
A integração de pessoas, sistemas, metodologias e processos, transformando dados em informações e este em conhecimento, como os sistemas dos órgãos municipais, que alimentam bases governamentais, como o DataSUS no caso da saúde, entendimento local com agentes em campo, informações atualizadas permanentemente pela população, mídias sociais, pode-se revelar padrões e nuances dos fenômenos sócio espaciais que são invisíveis mesmo aos olhos mais treinados, e que assim possibilita alcançarmos a Inteligência em suas múltiplas dimensões.
O avanço da Geografia Médica e o desenvolvimento da Geografia da Saúde, esta com maior preocupação com serviços sanitários no contexto espacial, níveis de saúde e as variáveis ambientais, além da inserção política e social relacionada à Saúde Pública [12], é contemporâneo ao Dr. John Snow.
Este hoje é considerado o pai da epidemiologia moderna, do Geoprocessamento, dos infográficos e nos chama novamente atenção: mais que um governo pensar um sistema ou projeto específico para a dengue, Zika e seu combate no curto prazo (ou qualquer doença), por que não implantar uma visão integradora?
Visão – e intervenções – em que o cidadão, empoderado pela Geografia das Coisas e a democracia digital, apoia diversas secretarias com a criação e disponibilização de dados, utilizando dispositivos de planejamento e gestão com protagonismo da sociedade, e em que o Prefeito e seus secretários, por exemplo, podem acompanhar painéis de análise e decisão, trazendo seus sistemas especialistas, ERPs, imagens e mapas não como o produto final, mas como um meio para o entendimento do território e a tomada de decisão e sua consequente intervenção.
A resposta – e decisão – para o fim do surto de falta de informações, transparência e decisões é nossa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] PITTON, S. E. C.. Poluição e doenças respiratórias em cidade de pequeno porte: o caso de Santa Gertrudes. In: II Simpósio Brasileiro de Climatologia Geográfica, 1996, Presidente Prudente – SP. Resumos do II Simpósio Brasileiro de Climatologia Geográfica, 1996. p. 77.
[2] JOHNSON, S. O Mapa Fantasma: Como a luta de dois homens contra o cólera mudou o destino de nossas metrópoles. Rio De Janeiro, RJ: Jorge Zahar Editor Ltda., 2008.
[3] CLARKE, K. C. Geographic information systems. Bulletin, Special Libraries Association, Geography and Map Division, v. 142, 1985.
[4] ANDRADE, É.. Direito à cidade: A geografia do Zika. 2016. Disponível em: https://direitosurbanos.wordpress.com/2016/02/15/direito-a-cidade-a-geografia-do-zika/. Acesso em: 16/02/2016
[5] CEREDA JUNIOR, A.; GONÇALVES JUNIOR, F. . Da Análise Espacial à Análise do Espaço: para além dos algoritmos. In: XVII Encontro Nacional de Geógrafos, 2012, Belo Horizonte – MG. Anais do XVII Encontro Nacional de Geógrafos, 2012.
[6] GALLI, B.; CHIARAVALLOTI NETO, F.. Modelo de risco tempo-espacial para identificação de áreas de risco para ocorrência de dengue. Rev. Saúde Pública [online]. 2008, vol.42, n.4, pp. 656-663. Epub May 09, 2008. ISSN 1518-8787.
[7] SIMON, Phil. The Age of the Platform: How Amazon, Apple, Facebook, and Google Have Redefined Business. Las Vegas: Motion Publishing, 2011.
[8] CEREDA JUNIOR, A. Muito além da Internet das Coisas: a Geografia das Coisas. Conhecimento Prático: Geografia, São Paulo: Editora Escala, p.30-31, abr. 2015, ediçã0 60. Bimestral.
[9] CASTELLS, M. A sociedade em Rede – a era da informação: economia, sociedade e cultura – Volume 1. São Paulo: Paz & Terra, 2002.
[10] LINHARES, B. V. Dengue 2014 na Moradia Estudantil da UNICAMP: Mapeamento Colaborativo. 2015. Disponível em: http://beatrizviseu.blogspot.com.br/2015/03/dengue-2014-na-moradia-estudantil-da.html . Acesso em: 20/02/2016
[11] PROJETO GEOAPP UNIFAL Coordenação Clibson A. dos Santos. Comparação dos Focos de Dengue em Alfenas-MG. 2015. Disponível em: http://arcg.is/1iOymTF. Acesso em: 20/02/2016
[12] SANTOS, F. de O. Geografia médica ou Geografia da saúde? Uma reflexão. Caderno Prudentino de Geografia, Presidente Prudente – SP, v. 1, n. 32, p.41-51, jan/jun. 2010.
[a] Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (SP) [b] Universidade de Campinas (SP) [c] Universidade Federal de Alfenas (MG)
Observação importante: este artigo, originalmente, foi publicado em versão reduzida (Geografia da Saúde e o destino de nossas Cidades) e apresentado neste blog e outros meios de comunicação.
Você está lendo o artigo final deste texto. As demais partes do artigo, presentes na revista, NÃO são de minha autoria.
“GEOGRAFIA DA SAÚDE E O DESTINO DE NOSSAS CIDADES” FOI INICIALMENTE PUBLICADO EM:
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